de geração em geração

A avó de Simone, Antonieta, com apenas 13 anos, cruzou o Oceano Atlântico, em 1915, em busca de uma vida melhor no Brasil. Provinda da aldeia do Vilar, em Portugal, partiu a menina para uma jornada de esperança de um futuro mais promissor no continente de destino. Uma família abastada portuguesa contratara os seus serviços como copeira no Rio de Janeiro. Muito dedicada, ela foi crescendo na carreira de serviços domésticos que prestava. De copeira passou a ser governanta e de governanta tornou-se dama de companhia da patroa. Esta fora educada em Paris e ensinava a etiqueta francesa para a sua funcionária.

Antonieta estimava sua vida independente e de aprendizado no trabalho, oportunidade pela qual possibilitou com que andasse com as próprias pernas. Casou tarde, para a época, com um primo de terceiro grau com quem tinha uma próxima amizade. A filosofia de relação, para Antonieta, era a de apreciar a companhia do marido desde que ele nunca levantasse a mão para ela. Com personalidade forte, essa jovem portuguesa se estabeleceu como a grande matriarca da família que formou. Teve o casal três filhos, um menino e duas meninas. A caçula delas veio a tornar-se mãe de Simone e cresceu com muita esperança de avançar nos estudos.

O pai, porém, cortou as asas da menina após ela concluir o primário. O foco deveria ser no corte e costura assim como faziam as outras moças naqueles tempos. Quando adulta, teve também três filhos, assim como a sua genitora: um menino; uma menina do meio, a Simone; e outro mais novo. Houve também a perda de um bebê, no interim, o que motivou as pessoas ao redor a responsabilizar as árduas condições de vida para a interrupção da gravidez. Além das dificuldades financeiras, o marido registrara um dos filhos com um nome diferente do combinado e as desavenças levaram a uma agressão física.

A mãe de Simone havia prometido para si mesma que, caso qualquer brutalidade acontecesse, seria esta em dose única. Não se permitiria manter-se em uma relação violenta. Com a difícil situação financeira e matrimonial, ela se mudou para a casa da mãe para melhores cuidados. O marido que não se dava bem com a família da esposa, não pode acompanhá-los. A mãe, agora praticamente solo, teve que se virar para financiar a criação dos filhos. Costurava para fora, mas com empenho nos estudos como autodidata que era, conseguiu passar em um concurso público para trabalhar no INSS. E mais adiante completaria a renda com outros dois trabalhos como recepcionista em consultórios médicos.

Simone, como única filha entre dois meninos, ajudava a avó a manter a casa em ordem. Enquanto a matriarca cozinhava para todos, Simone se encarregava da limpeza. Mesmo ainda pequena, arrumaram um banquinho para que ela alcançasse a pia para lavar a louça. Sem poder aquisitivo, os pratos na mesa variavam pouco. As tripas à moda do porco, uma espécie de dobradinha com feijão não agradavam o paladar de Simone que era, de toda forma, obrigada a comer o que se servia. O restante do bacalhau das ocasiões especiais como na Páscoa e no Natal, se transformava em açorda, misturado com pão.

Ao contrário de sua mãe que fora impedida de continuar os estudos pelo pai autoritário, Simone permaneceu na escola com afinco, rompendo a sina das gerações passadas. O pai, pelo contrário, estimulou Simone também a aprender inglês, o que abriu frentes de oportunidade em sua carreira. Inspirada em um professor da escola, decidiu prestar psicologia no vestibular. Já se preparando para a prova, planejou seguir pelos estudos clássicos. No entanto, se deparou com o latim que impôs dificuldades. A professora somente a passaria de ano caso ela se transferisse para o científico já que as condições não iriam melhorar com a adição de grego no currículo no ano seguinte.

Para a sorte de Simone, quando prestou vestibular, psicologia mudou de humanas para biológicas o que possibilitou a sua entrada na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Cursando a faculdade, logo começou com os estágios. Já tinha convicção que gostaria de seguir na área de psicologia empresarial e organizacional. Foi aprendendo por onde passava. Depois de formada, também trabalhou em grandes empresas atuando em treinamento, recrutamento e seleção até que decidiu partir para uma destemida iniciativa profissional. Resolveu se tornar consultora independente e conquistar uma cartela de clientes. O negócio prosperou até uma crise econômica nos anos 90 brecar seus planos. Com seus investimentos certeiros, conseguiu sobreviver até retraçar os objetivos.

Durante sua vida universitária, casou e engravidou. A filha nasceu na mesma época de sua formatura em uma cesárea de emergência. Pós-maturo, o bebê continuava tranquilo em seu ventre, sem movimentos para vir ao mundo. Mudou de médico na última hora e teve a filha em um hospital público no qual o obstetra indicado por seu irmão estava de plantão. O segundo filho veio pouco tempo depois e já com a experiência de que Simone não entraria em trabalho de parto, a cesárea já foi programada com antecedência. Separou-se e resolveu morar em São Paulo para uma nova jornada de vida. A carreira alavancou e criou alicerces para levar os filhos para a capital paulista.

Simone não considera ter sido uma mãe tão presente tendo que conciliar a criação dos filhos com o trabalho excessivo. Um dos momentos marcantes, porém, foi uma viagem com o intuito de abrir os olhos das crias para a vida para além dos shoppings e praias que estavam acostumados. Programou uma viagem de carro para Natal e partiram os três. Percorrendo áreas carentes do Brasil, se depararam com famílias passando fome na beira da estrada. Os filhos ofereciam a comida que tinham no veículo para as pessoas necessitadas pelo caminho. A aventura contou até com um atropelamento de um cachorro que subitamente apareceu na estrada e uma parada pela polícia na volta. Ficou guardada a experiência de passar para os filhos um pouco do que Simone guarda dentro de si. A vida das mulheres da família vai assim se transformando de geração em geração.