de frente consigo mesma

Quando criança, Carla se interessava em pegar panfletos de empreendimentos mobiliários nas ruas de São Paulo para examinar as plantas dos apartamentos neles impressas. Como gostava de desenhar, reproduzia aqueles projetos residenciais que tanto a atraiam. Os modelos, porém, não preenchiam suas aspirações. Queria ela criar as próprias plantas habitacionais. Com um primo de seu pai, aprendeu a fazer escala e aplicá-las em suas ilustrações. Carla então planejava os cômodos com as equivalências devidamente ajustadas. A menina se entretia concebendo moradias imaginárias, mas bem traçadas como uma pequena arquiteta.

Com seu lado artístico aflorado e gosto pelas plantas arquitetônicas, Carla propôs para os pais fazer um curso técnico em design de interiores quando ainda adolescente. Passou na concorrida prova de admissão e se engajou nas aulas para aprender tudo sobre aquele campo que já fazia parte de seu universo desde cedo. Em certo momento da vida, ainda jovem e precisando de dinheiro, começou a vender azulejos pintados por ela em um viaduto em que havia uma feirinha de artesanato e movimento de pessoas. Um amigo, contudo, a viu sentada confortavelmente em sua canga naquele local e achou que ela tinha era virado moradora de rua e passava dificuldades.

O rumor se espalhou dentre outros conhecidos que se mobilizaram com a situação tecida de Carla e arrumaram uma oportunidade de trabalho para ela. No entanto, para a vaga seria necessário conhecimento em um software que ela não dominava. Aprendeu o básico para o teste e conseguiu impressionar seus superiores ao planejar a cozinha solicitada nas orientações. Construiu toda uma carreira na área de design de interiores através dessa chance. Os anos de experiência projetando espaços foram se acumulando ao longo de mais de uma década.

No âmbito pessoal, embarcou em uma nova jornada através da Ayahuasca. Na primeira experiência, sentiu seu corpo se fundir com o chão como se não houvesse divisão entre Carla e a matéria. Não era só a vida humana que existia, mas tudo ao redor também pulsava. As vivências através do chá abriam espaço para encontros com algo prazeroso e clareza de ideias até que um dia se deparou com uma sessão mais sombria. Não somente de flores se constituía a vida e seus processos internos precisavam emergir.

Carla se deparou com o medo, como se uma força da natureza lhe desse um tapa na cara. Enquanto as experiências passadas haviam sido afáveis, esta a colocaria de frente consigo mesma. A pergunta que vibrava era se ela estaria se olhando. Começou então a chorar e processar o que ocorria. Carla se deu conta de que havia tido namorados e relacionamentos em que se dedicava em demasia a ajudar as pessoas próximas. Mas faltava um cuidado para com ela mesma e também se abrir para receber o que não fazia parte de sua vida até o momento.

Pouco tempo depois, em uma saída para a noite, Carla se deparou flertando com uma pessoa que dançava por perto. O interesse foi aflorando de acordo com que o tempo passava. Após alguma insistência por parte da Carla, as duas acabaram ficando, mas não trocaram contato e se desencontraram durante a noite. Carla até tentou procurar pela mulher que se encantara fuçando pela internet, mas só sabia o seu apelido e não foi possível localizar qualquer informação. Por sorte do destino, Tita também buscou por Carla e a encontrou nas redes sociais para a satisfação de ambas.

As duas se encontraram novamente e o clima de romance continuou fluindo bem até que Tita revelou que partiria para Rússia para uma viagem de trabalho durante a Copa do Mundo que lá acontecia. A separação física rendeu um contato virtual intenso. Como Carla não tinha antes tido um relacionamento com uma mulher, ficou um tanto apreensiva ao planejar encontros futuros que envolveriam algo a mais. Seu receio, todavia, logo se dissipou ao se entregar para aquela nova relação. Carla recebia um modo de carinho e atenção inéditos em sua vida.

Com logística dificultada pela distância entre as residências de cada uma já que Tita morava em Barueri, partiram para uma jornada conjunta. Carla foi morar com Tita com seus dois gatos que se somaram aos dois da amada. Arrumou um trabalho em Alphaville e sua vida passou a ser por lá. No entanto, a demanda no trabalho começou a exigir cada vez mais do tempo de Carla. O excesso de projetos fez com que ela se recordasse das palavras do avô que afirmava que as pessoas deveriam trabalhar para viver e não viver para trabalhar. Carla pensou em sua saúde física e mental para se libertar do trabalho fixo. A vida vivida em piloto automático recebeu um respiro.

Perguntou-se qual estilo de vida gostaria de ter daquele momento adiante. Ao invés de colecionar coisas, se deixaria guiar pela vivência. Livre para atuar por conta própria, Carla se reconstrói, se dedicando, além de aos projetos de design de interiores, a outras áreas de interesse. Com seu amor pela cozinha, passou a vender tortas variadas. Pretende também preencher seu tempo com a cerâmica que a fascina. O Taekwondo ficou de lado por anos, mas Carla gostaria de retomar essa atividade já que falta pouco para que se torne faixa preta. Ao desacelerar, Carla se abre para novas oportunidades ao mesmo tempo em que inspira as pessoas ao seu redor a viver com coragem e autenticidade.